quinta-feira, 9 de setembro de 2021

Maria Sampaio - a bisa

Relato da tia Alice

Eu tive uma avó inesquecível. Era o protótipo da avó: gordinha e mineira. Estava sempre de avental fazendo suas delícias na cozinha. Adorava fazer doce, cocada, paçoca e muito mais. Eu pensava que toda avó era gorda e boa. E as magras, achava que eram más como as bruxas.

Vovó se chamava Maria Augusta e foi uma pessoa muito sofrida. Eu cresci ouvindo suas histórias e descobrindo que meus antepassados eram uma mistura de índios, portugueses, italianos e irlandeses. 

Existia uma família em Campos dos Goitacazes, no interior do Rio de Janeiro, que era muito tradicional e rica. Carolina (ou Maria Luiza) de Almeida Sampaio era a matriarca que, além de cuidar de suas terras, tinha  um Hotel muito bem frequentado na cidade de Friburgo.  Seus filhos se chamavam João Luiz de Almeida Sampaio e Marina de Almeida Sampaio.

João, ou melhor vovô Sampaio, era um homem de estudo e muito educado. Aos dezenove anos,  foi trabalhar na estrada de ferro que ia até Minas Gerais. Lá, na cidade de Ubá,  ele conheceu uma mulher chamada Jorcelina e se encantou por ela. Jorcelina era filha de uma índia que, em 1850, foi laçada no mato por um português safado que já era casado mas levou a índia para sua casa. Jorcelina então, era uma mistura de índio com português, e, segundo vovó, meio bronca, grossa, sem educação e feia. Mas o que importa é que também se encantou por João Luiz e os dois se casaram. Desse casamento nasceram Maria Augusta, João e José.

A matriarca Carolina, mulher de opinião e personalidade forte, não gostou da ideia quando soube desse casamento. Começou a escrever cartas desaforadas para seu filho. E talvez tenha influenciado muito na desavença entre o casal porque,  ao mesmo tempo, João  também já não estava se entendendo muito com a Jorcelina. Muito irritado e nervoso, pegou Maria (com 9 anos) e João (com 7 anos) e disse que ia dar uma volta. Mas entrou no trem e foi para Campos, ou seja, sequestrou as crianças. Quando Jorcelina soube, pegou o José que era mais novo, entrou no trem e foi para Campos também. Lá chegando, virou para a Carolina e disse: já está criando dois então fica com esse também.  E sumiu no mundo. 

Assim, vovó aos nove anos passou a ser criada por sua avó paterna, que não gostou nada dessa situação. Ela não demonstrava nenhum carinho pela neta e implicava com tudo que a criança fazia. Resolveu então, colocá-la num colégio interno. Tinha condições de pagar mas ao invés disso, conseguiu uma bolsa onde Maria foi estudar em troca de serviços domésticos na cozinha. Era a própria gata borralheira. A avó Carolina tinha netos também da sua outra filha, Marina. E sempre dizia assim: Filhos de minha filha, meus netos são. Filhos do meu filho, serão ou não. Ou seja, para os filhos da Marina, tudo. E para os filhos do João Luiz, nada!

O Colégio Batista, em Friburgo, era um dos melhores do Brasil e vovó teve uma educação da melhor qualidade. Recebia meninas de famílias ricas de todo o país. Com isso, vovó fez amizades com meninas de boas famílias, como Nair de Teffé, Bahut e outras famosas como a esposa do Ministro Hélio Beltrão.

Aqui preciso contar sobre como vovó Maria conheceu o marido.

Vovó tinha um primo que era seu pretendente. Mas um dia, conheceu Francisco com aquele porte atlético, bonito e muito simpático. Então, ela trocou o primo pelo "bonitão" e eles se casaram. Mas acho que a troca não foi muito boa. 

Como já contei antes, Francisco era um mulherengo e abandonou vovó com seis filhos pequenos: Norma, Ivone, Irene, Eunice, Célio e José.

A situação ficou grave quando ela percebeu que ele não voltaria mesmo. Então, vovó foi vendendo coisas de valor que tinha em casa como quadros, louças, moveis, e algumas bandejas de prata. Antes do vovô Chico largar a família, a vida era normal e eu diria que até muito boa, sempre com carne, galinha, macarronada e muita sobremesa, pois vovó era exímia em doces mineiros.

Ela fazia de tudo para manter seus filhos saudáveis. Minha mãe, Norma, aprendeu a costurar e vovó arranjava freguesas amigas para ela fazer vestidos. Essa época foi muito difícil e todo dinheiro que entrava era para colocar comida em casa. E, na maioria das vezes, era só uma sopa ou café com pão. Por sorte, podiam contar com a ajuda do Frei Luiz Reinh que dava sacolas de comida para os pobres. E assim, a família seguia sobrevivendo.

A luta era grande e vovó conseguiu um emprego como cozinheira na casa de uma família rica. Minha mãe ficou com tanta tristeza disso que emagreceu 12 quilos. Ela achou  que era muita humilhação para vovó que sempre pode contar com ajuda de empregadas. Choraram juntas no sofrimento do abandono e da vida que estavam levando.  

Estava duro suportar aquela situação, pois vovó sofria também pela saudade que as crianças sentiam do pai. Os menores não entendiam tudo que estava acontecendo com eles. E vovó ainda tinha esperança que Chico voltasse para casa. Mas isso nunca aconteceu.

Ele levou seis meses sem dar notícias e ,por meio de pessoas conhecidas,  acabou sabendo que ele estava morando com outra mulher e ela já estava grávida.

Vovó não sossegou enquanto não descobriu toda a verdade. Ele se apaixonou pela babá da família onde ele trabalhava como motorista e foi viver com ela. Um detalhe curioso é que também era amante da cozinheira. Com a babá, constituiu outra família e teve um casal de filhos. Mas foi com a cozinheira que viveu até a sua morte.

Acabaram de vez, as pequenas esperanças que ela ainda nutria. Dinheiro nem é bom falar porque nunca mandou nenhum.

Vovó não havia contado para seu pai, vovô Sampaio, nada do que estava passando com seus filhos em Petrópolis. Ela sentia vergonha e dificuldade de comunicar aquela situação para o pai que vivia em Nova Iguaçu/RJ.  Um dia ela se encheu de coragem e escreveu uma carta contando todos os detalhes.  Ao tomar conhecimento da situação da filha e dos netos, meu bisavô, embarcou para Petrópolis assim que leu a carta.

Chegou muito triste e chorou muito com vovó e os netos abraçados. Deu 200 mil réis, que era muito dinheiro no ano de 1934, e prometeu 500 mil réis todos os meses. E assim, as coisas foram melhorando para a família e vovó, que era uma pessoa incrível,  seguiu cuidando da sua família com muita determinação e amor. 

Quando eu era criança adorava receber a visita dela na nossa casa. Aquela visita era pura alegria. Vinha cheia de sacolas com roupas e revistas das primas ricas. E o melhor de tudo, muita história para contar. Tinha uma revista Argentina, "Dona Tremebunda", que era para mim. A mulher tinha os ombros largos como eu e era muito mandona, mas esse não era o meu caso. 

Assim, eu e meus irmãos, fomos crescendo e ouvindo todas as histórias de uma mulher sofrida mas que a vida não conseguiu endurecer seu coração. Era doce e bondosa! deixou marcas profundas em todos que conviveram com ela. 

E sempre cultivou aquelas amizades antigas da época do colégio em Friburgo. Inclusive, quando Paulo, meu irmão, passou para a Polícia Militar, ficou com medo de ser reprovado no exame físico porque estava abaixo do peso. Comentou com a vovó e ela disse que tinha um amigo que era Oficial Médico no Hospital da Policia: o Correntino Nogueira Paranaguá. Paulo falou assim: mas esse é o Diretor do Hospital. E vovó Maria disse: ele carregou as alianças no meu casamento. Deixa comigo. No dia do exame não teve pesagem!!

Dos irmãos que também foram entregues para a matriarca em Campos, pouco se sabe. João foi Sub- Oficial da Marinha de Guerra. Morreu na explosão do cruzador Bahia na costa do Rio de Janeiro no final da guerra em 1945. E José, ainda jovem, foi morar no Rio de Janeiro  e trabalhar em uma padaria na rua Hadock Lobo. Teve tuberculose e morreu em três meses com 32 anos de idade.

Vovó era meu exemplo de vida. E eu sempre pensei assim: quando eu for avó, quero ser igual a ela. E é o que tento fazer por meus netos.


Meu relato:

Esse foi o relato da tia Alice. E concordo quando ela disse que a vovó Maria deixou marcas profundas. Acho que eu tinha uns 13 anos quando ela morreu. Nós estávamos no sítio em Magé e naquela época lá não tinha nem luz, imagina telefone. Lembro que alguém chegou de carro (acho que tia Alice) para contar que ela tinha falecido. Isso foi uns dois ou três dias antes de completar 80 anos. Até hoje eu lembro dela chegando na nossa casa na rua Carvalho Alvim (Tijuca) cheia de sacolas. Ela sempre carregava umas caixinhas de queijo catupiry com coisas dentro. Eu adoro ler e sempre cultivei esse hábito com muito orgulho. O primeiro livro da minha vida foi ela quem me deu de presente: Pollyanna. Eu li várias vezes ao longo da vida e adoro. Também lembro dela me ensinando a fazer crochê sentada no sofá ao meu lado. Um dia eu estava muito triste (não lembro o motivo) e ela apareceu no meu sonho. Já tinha falecido há uns vinte anos, mas no sonho eu abria a porta e ela me abraçava apertado dizendo que estava tudo bem. Ela era muito fofa mesmo.

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